
Acabou. Luís Figo, o jogador de futebol da minha vida, acabou a carreira.
Quando for velho, quando os putos da altura me falarem do mais recente produto da Academia sportinguista, mais um candidato à Bola de Ouro, eu responderei com um saudosista, “o melhor de todos foi o Figo, nunca houve mais nenhum igual”. Estou, hoje, a dezenas de anos de distância, absolutamente convencido que nunca haverá um jogador de futebol assim.
Para mim, na relação que mantenho com o futebol, seguramente mais nenhum jogador de futebol chegará, da mesma forma, ao meu sistema nervoso central. Porque eu cresci com o Figo. E o futebol cresceu em mim com o Figo. A minha ligação ao Sporting potenciou-se com o Figo. A minha paixão pelo futebol moldou-se com o Figo. Com o futebol do Figo, eu fui testemunha privilegiada de uma absolutamente improvável combinação de arte, trabalho, coragem e liderança. O Figo dentro das quatro linhas foi, na sua progressão, uma lição de vida.
O homem pouco me interessa. Pouco me interessou, sempre. Talvez uma escolha semi-consciente, quando se começou a perceber que o homem tinha pouco a ver com o futebolista. Mas, nesta esquizofrenia constante, o futebolista era tão grande que tornava o homem inferior e descartável. Um Peter Parker para o Spiderman.
O Figo do Sporting foi o ponto da partida, de uma importância para o meu sportinguismo que, quem conhece o meu percurso de vida clubística, perceberá (aos outros, poupo-os por tímida modéstia). O Figo do Barcelona acompanhei-o como se toda a minha geração estivesse à prova na Europa. Era ali que íamos mostrar o que valíamos. E valemos muito. Inesquecíveis fintas. A “bicicleta”, as simulações dos centros que punham os defesas à roda, os golos contra o Real Madrid, aquele fabuloso golo no épico da Taça de Espanha contra o Atlético de Madrid, de fora da área, na sequência de um canto. A confirmação de um talento construído na base do trabalho. Um líder, um símbolo.
Pelo caminho, o percurso inigualável do melhor jogador português de sempre na selecção. O mais consequente do futebol champanhe de 1996, o fabuloso líder de 2000, a melhor equipa de Portugal que eu vi jogar.
O Figo do Madrid valeu pelo primeiro ano e meio. Já era outro símbolo, de coisas que abomino. Mas com a bola nos pés, fez a segunda melhor época da sua carreira. Com a globalização às costas, continuou imparável em campo. Mágico. Depois, aquela lesão, acabou para sempre com o meu Figo. O melhor extremo direito da história do futebol. Sobrou o líder, o guerreiro, o capitão. Ainda ouve uma reciclagem do Figo original no Euro 2004, onde fez os dois jogos mais marcantes da sua carreira, para mim. Não tanto pelo talento, velocidade, instinto, que já lá não estavam na plenitude, mas por isso mesmo. Porque, como um leão maduro, não foi atrás da presa. Deixou a presa vir até ele. E devorou-a. Contra a Espanha foi um exemplo épico de liderança, levando uma nação às costas. Contra a Holanda, fez o melhor jogo de sempre pela Selecção. Um jogo perfeito. A imagem dele na Luz, com os papelinhos azuis e brancos a voar, é a imagem do momento mais doloroso da minha vida futebolística, um daqueles que invade a galeria da vida real. Porque eu queria ganhar. Mas queria ganhar com ele.
O primeiro ano em Itália ressuscitou-o pelo orgulho. Foi na altura certa para o futebol mais difícil do mundo. Deu uma contínua e regular lição de classe amadurecida. Como um Grand Torino, como o Grand Torino. Depois, foi uma lenta valsa até ao fim.
O Figo será sempre vítima do homem. Mas a história julgará o futebolista. E esse foi o melhor jogador de futebol da minha vida. “Eu vi o Figo”. Que melhor posso dizer quando for velho?