Todas as quartas, a voz dos cacifeiros salta da caixa de comenários para a primeira página, naquela que considero uma forma de enriquecer o blogue, de reforçar o Sportinguismo e de agradecer a todos os que, diariamente, ajudam a fazer do Cacifo aquilo que ele é ( quem quiser saber as regras, clique aqui).
E o de hoje tem a particularidade de ser escrito por uma Leoa, que assim se torna na primeira mulher a assinar um post no Cacifo. Um grande post, diria eu, subindo a fasquia em relação ao que já de bom tinha sido escrito na primeira semana e aumentando a responsabilidade do escriba que se segue: Oscar Neves.
Um pouco mais de verde
by Lioness
Eram as Barbies. Os laços e as fitinhas. Os Nenucos, nababos numa corte de bonecas. Os tachinhos, os pratinhos, as chaveninhas e os bulezinhos, todos com a pega do diminutivo que (só) cabe numa cozinha em ponto pequeno. E antes que a janela se feche com a pergunta irritada – mas porque “raio” (ou uma caralhada que o valha*) é que eu estou a ler sobre brinquedos de criança (de miúda, ainda por cima!) num blogue sobre o Sporting??!! Por nada. Ou talvez por tudo.
Ao ver o Sá Pinto a cirandar junto ao banco, na passada quinta-feira, enquanto os arruaceiros do Legia nos tentavam escavar o estádio – bem que podiam ter emprestado um centésimo da agressividade ao Juskowiak, podia ser que ainda tivesse marcado mais uns golitos quando por cá passou – dei por mim a pensar não no instante em que me tornei sportinguista, porque não me lembro, mas no exato momento em que tomei consciência disso. E porquê puxar o fio ao novelo das memórias, em vez de gritar, como quem tenta coser o fio de jogo esgarçado da nossa ainda frágil equipa, a ver se remenda em campo os buracos que outros rasgam nos bastidores? Porque o Sá Pinto estava lá, nesse exato momento de que vos falo. Porque nesta passada quinta-feira – 18 anos depois – nos voltámos a encontrar. Mas essencialmente porque continuo a crer (passo a imodéstia) que é por pedaços de história comum como esta que ainda sentamos os dedos nas teclas para escrever sobre o Sporting, como se corrêssemos esbaforidos pelo campo, rumo à baliza. E continuamos a olhar, mesmo quando as vitórias fazem gazeta, para o nosso lugar no estádio como o recanto mais confortável da nossa casa, apesar da cadeira ser dura, de estar um frio do camandro, do gajo da frente não se baixar nem por um segundo e do Izmailov ter falhado aquele golo de baliza aberta, como é que possível, car…aças?! [E sim, bem sei que ele agora se redimiu].
Voltemos às Barbies. Aos lacinhos, às fitinhas e por aí adiante. No tsunami cor-de-rosa que despencava sobre o meu quarto de miúda era difícil manter a cabeça à tona. Foi então que o meu pai – sportinguista dos quatro costados, mas pouco dado a evangelizações à força – resolveu resgatar-me, com uma pincelada verde. Subtil, mas a tinta permanente. Único filho homem no meio de duas irmãs, sem sobrinhos por perto, com um sogro que ligava pouco à bola e sem filho varão para dar continuidade à linhagem sportinguista, apostou que sairia da boca da filha mais nova o rugido de leão (de leoa, neste caso) que tanto ansiou ouvir. E acertou na mouche.
Talvez porque me tenha ensinado a ler nas páginas d’A Bola – já sei que vão dizer que é o jornal dos “lampiões”, mas para mim ler A Bola é como quando mascávamos pastilhas Gorila quando éramos miúdos: sabíamos que aquilo nos ia deixar um buraco nos dentes e outro no estômago do tamanho do Grand Canyon, mas atafulhávamos a boca com aquela porcaria na mesma – ou porque me via devorar livros como o Maniche devora javalis (ou seria o Obélix? Não, esse era um bocadinho mais magrinho), o meu pai ofereceu-me aquilo que, no Sporting havia de mais parecido com um livro (pois, há o Almanaque, mas, lá em casa, almanaques só o Borda d’Água, para saber para que lado sopra o cabelo do Paulo Bento): a caderneta de cromos do Sporting, época 1994/95. A minha primeira caderneta. Tinha eu 6 anos, e uma vida pintada a verde pela frente
Nas janelas numeradas colaram-se primeiro o verso dos autocolantes e depois os meus sonhos. Mal sabia eu que as meninas não jogam à bola – na verdade jogam, eu é que não, que tenho o talento futebolístico de uma love child do King com o Michael Thomas – e já me imaginava dentro das quatro linhas a fazer o gosto ao pé. Ao meu lado, o Sá Pinto, (ainda) com os caninos afiados, como um leão faminto, o Naybet e os seus canudinhos – «Pai, não gozam com ele por ter cabelo de menina? Achas? Levavam logo um papo-seco nas trombas, que ele não é de se ficar!», o Marco Aurélio que me acompanhou até à véspera do primeiro campeonato, o Nuno Valente quando começou a fazer a dieta do Maniche, o Figo com uma farta cabeleira e sem tanta peneira, o Peixe já fora de água, o Costinha aos domingos à tarde, na baliza, com o seu chapéu, o Cintra que nos dá o mote e o Paulinho que nos empresta o Cacifo, o Balakov que o meu pai me ensinou a tratar pelos dois nomes, «como se tratam os génios», e tantos outros de boa e má memória. (Entretanto descobri noutro blogue esta foto, que rematava a caderneta).
E eu que olhava para todos eles, cheia de vontade que o meu pai me levasse mais uma vez (só mais uma!) ao velhinho Alvalade. Como agora, não éramos campeões de nada, a não ser do Queijo Castelões, mas havia garra, carisma, o célebre (e desculpem-me o tom carroceiro) «até os comemos, caralho» (digo eu agora, que na altura desconhecia o vernáculo).
Havia o esforço, a dedicação e a devoção que voltei a ver no rosto do Sá Pinto, 18 anos depois (e é claro que já tinha visto antes, mas ainda não ao leme deste barco desgovernado que tem sido o nosso Sporting, nos últimos tempos). Às vezes, como julgo que aconteça com ele, também me apetece saltar para o campo, abanar os jogadores e dizer-lhes, ao jeito do Jorge Perestrelo, mas adaptado a quem lhe falta a barriguinha: «até eu, com as minhas pernas de alicate, fazia melhor, porra!».
Tal como o Sá Pinto, que porventura não chegou ao lugar que (não tenho dúvidas) sempre quis seu na hora mais certa, talvez também eu não seja a pessoa mais indicada para estar a falar sobre o meu clube, nas quatro linhas de um Cacifo onde provavelmente a maioria dos que aqui se acotovelam me ganham em anos de sportinguismo, em conhecimento futebolístico e em jeito para a bola. Mas é isto que, para mim, é ser do Sporting. É não virar a cara a luta, é ser maior que o tamanho dos nossos sonhos, para pôr os pesadelos atrás das costas. E é arriscarmo-nos a fazer figura de urso (ou ursa leoa) pelo Sporting – que é o nosso grande amor – de sorriso até à testa.
Finalmente, é por isso que depois do esforço, da dedicação e da devoção, acredito poder estar a despontar (mesmo que ainda muito longe) o prenúncio da glória. Que o Sá Pinto esteja no lugar dele, e eu a espreitá-lo do meu, no topo Sul, com a minha velha caderneta debaixo do braço da memória, é o que desejo. E que estejamos todos a celebrar um pouco mais de verde.
*pois é, eu também li o comentário ao anterior “hoje escreves tu”, sobre como o Cacifo se está a tornar numa espécie de cruzamento entre as entrevistas do Daniel Oliveira e o programa As Tardes da Júlia. E aos que partilham dessa opinião, deixo o meu mais sincero: aprendam a ler, foda-se!