Olá, eu sou o Sporting Clube de Portugal.
Não levo a mal que não me tenhas reconhecido. Afinal, estou longe daquela imagem bonita que te fez dar continuidade a uma paixão que já vem do tempo em que os teus avós ainda brincavam com os avós deles. E, também, não levo a mal que te mostres reticente sobre a minha capacidade de sair desta cama de hospital onde, ligado à máquina, luto pela vida. Sabes, gostava de aproveitar esta hora mais tranquila, para dirigir-te algumas palavras. Para desabafar. Para contar-te a minha versão deste período negro da minha história.
Há dez anos, mais coisa, menos coisa, tive oportunidade de colocar um ponto final na dicotomia que havia tomado conta do nosso futebol. Quer dizer, não é bem uma dicotomia, pois um dos meus rivais tem ganho quase sempre, mas eu vou utilizar esta expressão porque sei que, assim, a nossa comunicação social fica feliz. Dizia eu, há dez anos, tive oportunidade de alterar o estado de coisas. Em três épocas, fui campeão duas vezes, ganhei uma Taça de Portugal, e duas Supertaças. Os miúdos, pequeninos, iam para a escola a cantar «só eu sei porque não fico em casa». A equipa tinha craques para todos os gostos, incluindo alguns saídos da formação, o que permitia um excelente aproveitamento de marketing e a valorização de quem jogava com a verde-e-branca ao peito. A verdade, é que tudo isto foi desperdiçado face a algo que tem vindo a acentuar-se: falta de um rumo definido e falta de influência junto das estruturas que mexem com os cordelinhos deste pestilento futebol nacional.
Dias da Cunha bem alertava para o sistema, mas o seu ar alucinado de pouco lhe valeu. Ainda assim, no segundo ano, dando continuidade ao investimento em jogadores cuja experiência e qualidade permitiam o crescimento e afirmação nos nossos jovens, esteve perto de conseguir um feito inédito: com um futebol que empolgava as bancadas, ser campeão e ganhar a Taça UEFA. O sonho transformou-se em pesadelo, o arranque da época seguinte foi negro e o poder entregue a Filipe Soares Franco. Defendeu-se, então, que era hora de inverter o rumo. De poupar o dinheiro gasto em jogadores vindos de fora, dando prioridade à nossa formação. Ganhei Taças, fui à Champions, mas, aí, levantou-se outro problema: assumiu-se que era para esses objectivos que eu estava a jogar, e instalou-se a ideia de que isso podia ser bom se atrás de nós estivesse o nosso eterno rival. Sim, é verdade que o campeonato (e a Taça da Liga), fugiu por culpa de influências de apitadores e bandeirolas, mas esse é um problema que só conseguiremos resolver quando resolvermos os que temos dentro de casa. E, dentro de casa, apesar das contas se mostrarem mais risonhas, a saturação face à ausência de títulos, às contratações de jogadores medianos ou medíocres que deixavam expostos os melhores (formados por nós), e ao futebol apresentado, conduziam a mais uma mudança presidencial.
Chegava José Eduardo Bettencourt e, com ele, aquela que tem sido a política dos últimos três anos: total ausência de projecto, esbanjamento de dinheiro em supostos craques, jobs for the boys, futebol miserável, discurso demagógico com objectivo de dividir (e confundir os mais influenciáveis), para reinar. Isto para não falar na duvidosa escolha de treinadores. Ainda assim, Bettencourt teve a lucidez de se demitir, permitindo o agendamento de eleições. Agitei-me como há muito não acontecia, especialmente perante a possibilidade de mudar radicalmente o poder instalado. O acto terminou com uma das mais tristes noites de que guardo memória, e que serviu de pronúncio ao estado em que actualmente me encontro.
Sejamos sinceros: seria um milagre, se um presidente que teve que esconder-se para fazer o seu discurso de vitória viesse a ter a capacidade de unir os Sportinguistas em seu redor. Podia ter acontecido, claro que sim, mas, já diz o povo, o que nasce torto, tarde ou nunca se endireita. Algo que assentava num bando de nomes conhecidos, num projecto que cabia numa folha A4, em intervenções televisivas guiadas por iPad, e em lançar a suspeição sobre os adversários, diz muito sobre Godinho Lopes. Godinho Lopes não tem o mínimo perfil para ser presidente do Sporting. Até pode estar cheio de boas intenções, mas não pode sê-lo. Foi ele que me encontrou a recuperar de um avc, é dele a responsabilidade por, neste momento, eu estar ligado à máquina. E, obviamente, estando ligado à máquina e tendo como presidente alguém de carácter duvidoso e inexistente capacidade de liderança, torno-me um alvo cada vez mais fácil. Dos árbitros, da imprensa, dos bancos, dos adversários (sejam de primeira, sejam de quinta), dos Carlos Barbosa desta vida que me envergonham enquanto adeptos, dos leões palermas que dão cara e voz nos programinhas de debate desportivo. Essa falta de respeito, essa imagem de fraqueza, passa de dentro para fora e regressa em dobro. Tanto que, basta recuar a quinta-feira para, de lágrimas nos olhos, recordar a forma vergonhosa e sem atitude com que praticamente todos os jogadores envergaram o símbolo do Leão.
Sinto-me um império transformado em exército. Em exército sem coronel, sem tenente, sem capitão, com os soldados tolhidos pela incapacidade de lutar. Um exército de quem ninguém parece querer tomar conta, numa altura em que tudo o que se pede é que alguém se chegue à frente com um projecto a sério (não será muito mais fácil assim, do que esperar que recolhas de assinaturas à porta do estádio, ou na internet, nos conduzam a algo de novo?). Mais grave: sinto que o povo, o meu povo, está cada vez mas dividido. Vejo-vos insultarem-se uns ao outros. Vejo-vos duplicarem o números de visitas e de comentários aos blogues sempre que as coisas correm mal. Vejo-vos criticarem quem ainda quer acreditar em algo. Vejo-vos apontar o dedo, responsabilizando-se uns aos outros. Vejo-vos incapazes de agir, de dar um murro na mesa. Vejo as claques agirem em função do que mais benefícios possa trazer-lhe. Vejo-vos tão perdidos quanto eu.
Eu não quero que venham visitar-me, e olhem para mim com aquele ar de quem pode estar a ver pela última vez alguém que ama. Claro que vocês não podem lavar as mãos do estado em que me encontro. Afinal, foram vocês que foram às mesas de voto. Afinal, são vocês que também se mostram indecisos quanto ao rumo, tão depressa querendo craques que sustentem os que chegam da formação, como querem que não se gaste dinheiro e se assuma que jogamos uns anos para o meio da tabela, acreditando ser essa a forma de ressurgir. Mas vocês continuam a ser o meu chão. A minha força.
E é por isso que decidi escrever-vos, enquanto tenho forças para tal. Para pedir-vos que, numa altura em que tudo aponta para que eu possa vir a entrar em coma profundo, não me abandonem. Eu voltarei. Não sei se renovado, se remendado. Mas, espero, com força suficiente para mostrar a tudo e todos que não sou peça de museu. E para gritar bem alto, «eu sou o Sporting Clube de Portugal!»